gestante

maria clara

Acontece.

Um dia você escova os dentes, entra no carro, vai ao mercado, toca a manhã como se fosse outra qualquer. Chega em casa, se joga no sofá.⠀

E acontece.⠀


É assim que os eventos divisores de água se instalam em nossas vidas. ⠀

Sem aviso, sem olhar a previsão do tempo, sem escolher uma data específica no calendário.⠀

Ontem, li um depoimento de uma mãe, que dizia mais ou menos assim:⠀

“Eu era exatamente como você. Uma mãe, uma esposa comum, levando uma vida normal. Nunca havia passado pela minha cabeça que isso poderia acontecer com a minha família. Milhões de vezes, me perguntei: ‘por que com o meu filho? Por que com a gente?’

Quer saber o que conclui?⠀

Por que não com ele? Por que não com a gente?

O que é que faz dele e de nós tão especiais e privilegiados ao ponto de não termos que encarar uma tragédia?”

A leitura me fez reviver momentos que bifurcaram a minha vida. E eu me lembrei de como eram os instantes antes do chão se abrir. E lembrei a vontade de dominar o tempo, só para fazer tudo voltar a ser como era há uma hora. Como era na semana passada, no semestre retrasado, no ano anterior.⠀

É na dor que contemplamos nossa fragilidade. Nossa pequenez, a finitude dos nossos.⠀

Voltamos a valorizar os problemas enormes, de esferas não fatais.⠀

Percebemos a grandiosidade das bobeiras e dos meio-sorrisos. Do sentar-se à mesa de jantar, de pijama. Da perda de tempo que é ter um conjunto de louça mais bonito ou uma toalha mais chique, que não é usada com quem mora na casa e habita nosso coração.⠀

É pensando na dor que reparamos na beleza em tirar fotografias mentais do normal, que nossa prepotência toma como certo, mas que virará nostalgia.⠀

A vida é um fio e nós somos minúsculos. Pequenas chamas de vela. Entre a luz e as gotinhas de parafina que escorrem, num instante, acontece:⠀

“Uh” - Deus suspira.⠀

E assopra.⠀

Faça valer.⠀


Autora: @rafaelacarvalhoescritora